Marca, que traz elementos que remetem à força do sertanejo, tem encantado as ‘comadres’
Um manifesto de nordestinidade e de modernidade. Assim podem ser definidas as peças produzidas pela artesã sertaneja arretada Júlia Maria Ferreira. Aos 38 anos, ela dá vida e cor à Flor de Caroá, uma loja on-line de adereços feitos à mão e que carregam consigo todo o orgulho, amor e sotaque do Nordeste.
Cactos, candeeiros, pássaros, pião, figa e bornal. Elementos da nossa cultura, figurinos e tradição que, nas mãos de Júlia, que também é designer de moda, ganham núcleos fortes e passam a compor colares, brincos e pulseiras, chamando atenção não só pela beleza, mas pela força que, de forma subliminar , carregam. Quem já usou um desses adereços, com toda certeza, já recebeu elogios ou foi alvo daqueles olhares curiosos.
A Flor de Caroá nasceu em 2016, com vestimentas, mas foi com os acessórios que a artesã se encontrou de verdade e pode mostrar ao mundo todo o sentimento de orgulho de ter nascido no município sertanejo de Batalha, em Alagoas.
“Em 2016, tomei a iniciativa de criar uma marca, sem 'nenhuma banda de conto' no bolso, apenas com o desejo muito grande de fazer dar certo. A marca começou com vestimentas que eu mesma costurava. Usava muita chita e retalhos de tecido porque eram mais baratos. As peças eram muito simples, mas todas ricas em detalhes e exclusivas, não produzia nenhuma peça idêntica a outra. Logo no ano seguinte, a marca acabou fazendo uma transição totalmente orgânica para um segmento que até então eu resisti em aceitar, mas não teve jeito, os adornos sempre foram minha marca registrada”, conta Júlia.
Como inspiração na hora de botar a mão na massa, ela afirma que lembra de suas próprias vivências, da infância, dos elementos que fizeram, e ainda fazem, parte do cotidiano da maioria dos sertanejos. A cabaça virou matéria-prima que agora enfeita os pescoços das “comadres” por aí afora. Além dela, o artesanato também utiliza madeira, cerâmica e tecido. Júlia conta que, para cada um deles, é preciso uma técnica diferente. A cabaça, por exemplo, após desconstruir o fruto, é cortada e lixada, antes de ser feita a montagem da peça.
“Eu sou sertaneja de Batalha, nasci e me criei lá. Sou a pessoa mais orgulhosa do mundo por ter nascido no Sertão. Tudo o que vem na minha mente, seja uma coleção, uma peça aleatória enfim, tem referência com nossa cultura, costumes, lembranças da minha infância. Para mim, é muito fácil criar peças com esse ‘sotaque’, sabe? Acredito que seja porque é de verdade, quando algo realmente faz parte de nós as inspirações transbordam. Os adornos da Caroá são manifestados, têm personalidade, e duvido passarem despercebidos. Seja pelo exagero ou até mesmo pelo simbolismo de peças menores”, conta.
Na Flor de Caroá, toda peça conta uma história. E é justamente essa história o pontapé inicial para a criação de um novo adorno. E não é nenhuma história, o designer destaca que é preciso que o público se sinta parte dela, se emocione.
“Eu sempre penso primeiro na história, ela tem que fazer sentido pra quem vai ouvir. Você tem que se sentir parte dela, tem que emocionar. Depois de ter muito ‘pano para os mangás’, vem a parte mais fácil, que é materializar essa história. Eu lembro de uma coleção que chorei durante a pandemia. Ela se chamou 'Maria' e foi próximo ao Dia das Mães. Pedi para meu irmão gravar depoimentos com Marias que fizeram parte da minha vida e também que as pessoas comentavam, deixassem recados para alguma Maria que fazia parte da vida delas.
Foi um sucesso! Também já fiz coleção que conheci de Candeeiro, Pau de Arara, Feira de Mangaio, todas elas se conectaram com o meu público de alguma forma', pontua Júlia.
O coração sertanejo, elemento presente em muitas peças da Flor de Caroá, tem um significado especial, pois foi criado a partir da particularidade de uma lembrança de infância feita pela mãe de Júlia e a união de elementos da bandeira do município de Batalha.
Quando questionada sobre uma peça que tem um significado especial, a artesã não hesita em falar do colar Lembranças do Sertão, que é capaz de encher os pescoços das mais descoladas com elementos muitas vezes desconhecidos por quem não é do Nordeste. Tem cangaceiro, cacto e sandália de couro. Tem ralador de coco, pião e colher de pau.
“O colar Lembranças do Sertão é, sem dúvidas, o mais significativo pra mim. Foi por meio dele que eu vi não só a força que a minha cultura tem, como também o tanto que ela fala sobre mim. Quando fiz a mudança de vestimentas para adornos, foi ele que fez essa transição. Tem tanta história divertida nele que eu passaria o dia contando”, diz Júlia sorrindo.
Interação com as 'comadres' e 'compadres'
Acompanhar a Flor de Caroá nas redes sociais é ter acesso à cultura e ao sotaque nordestino que a artesã e designer de moda Júlia Ferreira faz questão de carregar. Ela compartilha com as comadres e os compadres - como chama os seguidores - não apenas as peças que estão à venda, mas também os “causos” do cotidiano que todo mundo gosta de ouvir. Aquele fuxico do qual nenhuma pessoa que nasceu no Nordeste abre a mão.
Até quem não se identifica com o estilo das peças, às quais Júlia chama de manifesto, faz questão de seguir a marca e de apresentar uma pessoa querida na primeira oportunidade. Uma coisa é certa, não haverá uma peça igual em nenhum outro lugar.
“Minhas 'cumadis' amam os manifestos! É tão arretado ver que elas compram, fazem propaganda, postam fotos se amostrando…e tem aquelas também que não usam pelo fato de não terem o estilo delas, mas que quando querem apresentar, metem o grito lá pra garantir um presente autêntico, com a embalagem linda e mais cheirosa que mala de barbeiro”, brinca Júlia, destacando que faz questão de aparecer nas redes sociais para que conheçam quem está por trás de toda a produção artesanal.
“A Flor de Caroá é uma loja on-line e desde sempre faço apresentar nossas histórias para que as pessoas conheçam o artesanato por trás de todas aquelas criações. Acredito que o crescimento orgânico de seguidores e consumidores é o caminho. As pessoas estão lá não só para extrair a arte, eu apareço para contar causos, fuxicar e até tomar cachaça com eles. Acho que esse conjunto de manifestos contribui diariamente para o crescimento da marca”, ressalta.
Ela conta que se a Flor de Caroá fosse uma data comemorativa, ela seria o São João. “Quem é nordestino ama e espera por ele o ano inteiro. Exaltar o que nós temos de melhor é muito gostoso! Nossa cultura é riquíssima, temos uma fonte inesgotável de temas para abordar”.
Para Júlia, o desejo daqui para a frente é fazer com que a Flor de Caroá continue a encantar os amantes do Nordeste em todos os lugares onde eles estão, fazendo com que a marca alce voos cada vez mais altos. A artesã fala que tem consciência da importância de exigir para outras pessoas parte do processo de produção das peças, para que possa dar conta do aumento da demanda - que ela espera ter. E essa é justamente a maior dificuldade da Júlia empreendedora.
“Sem dúvidas, o desejo de ver a marca crescer cada dia mais é o desejo de todo artesão e empreendedor. Delegar as ações do processo de produção para que consigamos aumentar a produção é o maior desafio para mim, pois existe o apego, o perfeccionismo de querer fazer tudo sozinha”, diz.
Júlia não gosta de rotular uma marca como sustentável, apesar de emanar vários esforços pensando no futuro do planeta. “Acho muita responsabilidade rotular a Flor de Caroá como uma marca sustentável. Há anos eu mantenho na rotina algumas práticas sustentáveis, como as caixas que enviam pelos Correios, que são reaproveitadas, e os cartões que acompanham as peças, que são de papel reciclado. Mas, principalmente, tem a matéria-prima, que é a cabaça”, detalha.
Em primeira mão, uma empreendedora conta que está amadurecendo uma coleção que contará uma história que, segundo ela, vai render muitos comentários e participação das comadres e dos compadres que seguem a marca. Ela dá um spoiler e também destaca que, para quem ama as vestimentas únicas, prepare-se que “vem um manifesto de lindeza por aí”.
Inspiração para o nome
A Flor de Caroá é uma bromélia muito comum no bioma da Caatinga. Além de linda e resistente carrega, ela é um significado importante, pois de suas folhas são fibras extraídas que são a base de diversos produtos artesanais, como cestos, bolsas e chapéus. A flor é de uma rosa intensa que se destaca na vegetação e que, quando morre, não nasce fora do lugar, permanecendo apenas as folhas vivas. “Acho que o nome além de lindo tem tudo a ver com esse universo da arte e com a vida”, completa Júlia Ferreira.
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